José Lemos*
As melhores lembranças da minha infância e adolescência em São Luís estão, em boa parte, concentradas nos acontecimentos do mês de junho. A quadra chuvosa já estava no final e o céu se manifestava com uma tonalidade azul-anil, com poucas nuvens. Um belo espetáculo era olhar para o céu nesta época do ano. Durante os dias para vê-lo todo azul. Às noites estava sempre repleto de estrelas reluzentes.
Em maio culminavam os ensaios das brincadeiras de bumba-boi. Era um mês muito especial para os católicos, como a minha mãe, que era fervorosa, e nos educou (eu e o meu único irmão) assim. Maio culminava com a grande festa da “coroação” de Nossa Senhora no dia 31, com uma festa linda realizada na Igreja de São Pantaleão, que ficava em frente da Grupo Escolar Almeida Oliveira, onde eu fiz o meu curso primário. Primário e ginásio (que eu fiz no Liceu) somavam nove anos. O equivalente, bastante melhorado, do que é chamado hoje de nível fundamental.
Garoto, Dona Amélia, minha mãe, me levava para assistir àquela bela festa que tinha cantos e rituais muito bonitos. E a igreja ficava sempre lotada no espaço que ficava ao lado do Santuário que continha a imagem do Padroeiro “São Pantaleão”. Depois da festa religiosa, do lado de fora, havia muitas barracas vendendo iguarias: manuê (bolo de milho delicioso), quebra-queixo (uma espécie de cocada que requeria um robusto exercício dos maxilares e uma dentição saudável, para dar conta), roletes de cana (pedaços pequenos de cana cortados e espetados em uma espécie de gancho que era feito com a própria casca da cana), mingau de milho ou de tapioca, dentre outras iguarias típicas da época na nossa terra.
Ah! Tinham os balões a gás coloridos. Empinados pelo vendedor. Os meus olhos ficavam vidrados querendo um daqueles. Mas a grana da mamãe não era o bastante para alcançar a minha vontade de sair com um. Isso, contudo, não tirava a alegria daquele garoto que ficava frustrado por não poder exibir o seu próprio balão colorido.
Nesse clima chegavam os meses de junho. Nos finais de semana, começando nas sextas-feiras, as brincadeiras de bumba-boi contagiavam a cidade por toda parte. Cores, sons, melodias, poesias, toadas… Lindo e lúdico demais!
“Seu” Alexandre (Xandico, como era conhecido) e a sua família, eram vizinhos, parede com parede, da nossa casinha ali no Caminho da Boiada (nosso bairro). “Seu” Xandico era “brincante” do “Boi de Viana” (que não era da cidade de Viana, mas o seu criador era vianense, eu suponho). Como o “Seu” Xandico fazia parte daquele grupo, o “Boi de Viana” separava um dia do mês de junho para tocar numa madrugada na porta da casa dele, onde a família dele improvisava um arraial (“arraiá” como chamamos).
Dormindo, naquele sono profundo que têm os garotos, eu ouvia aquele som bonito se aproximando pela madrugada. No começo, um pouco distante e, depois, mais intenso porque ia se aproximando, até chegar ao seu pique ali do nosso lado. Levantávamos para assistir àquele folguedo que durava ao menos uma hora, numa madrugada calorosa e bela da nossa terra.
Antes do “batalhão” chegar, a família do “Seu” Xandico preparava uma fogueira que serviria para aquecer os “couros” dos tambores, pandeirões e equipamentos de percussão utilizados para fazerem aqueles sons maviosos. Eu vivenciei aquilo até os meus quinze anos quando tivemos que mudar de bairro por força da Avenida Kennedy que teria que ser construída e os pobres todos que moravam ali foram “indenizados” e obrigados a se dispersarem em outros bairros da periferia de São Luís. Nós fomos parar no Bairro da Liberdade, de reputação já então não muito salutar.
Aquelas madrugadas ficaram no meu imaginário. Difícil esquece-las. As carências da nossa família eram grandes, mas tínhamos naquela noite um espetáculo gratuito, lúdico, que me tirava da rede (eu sempre gostei de dormir em rede), sem qualquer esboço de aborrecimento por isso. Bom demais!
Em toda a cidade se espraiavam os “arraiais”. Mas havia lugares onde os festejos eram excepcionalmente mais bonitos. Alguns deles se concentravam na Praça Deodoro. Outros lugares de concentração eram os bairros do João Paulo e Madre Deus.
As toadas dos cantadores de bois sonorizam a nossa terra nos seus diferentes “sotaques”: matracas, pandeirões, zabumbas, orquestras… Temos no mês de junho, mais do que em qualquer outro, a transfiguração da nossa bela cidade em “Ilha Magnética”, como bem cantou o Cesar Nascimento em momentos de grande lucidez criativa.
Este será o segundo ano sem a presença entre nós do Papete que fez história também compondo e cantando a nossa música de bumba-boi. “Bela Mocidade” foi uma dessas preciosidades feitas por ele. Mas continuamos tendo belas toadas improvisadas, ou não, dos cantadores dos bois de Axixá, Morros, Maracanã, Maioba, Pindaré, Nina Rodrigues e tantos outros que fazem do mês de junho um diferencial da nossa terra.
Os festejos juninos alcançam o seu ápice no dia 29 de junho, que é o nosso feriado especial, ao contrário das demais partes do Nordeste, em que o feriado é no dia de São João. Tudo termina em 30 de junho na apoteose do dia de São Marçal no João Paulo. Ali, a magia acaba. É como se todos despertassem de uma longa noite de sonhos de trinta dias, e cai na dura realidade que é a regra da maioria dos nossos conterrâneos.
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*Professor Titular e Coordenador do Laboratório do Semiárido (LabSar) na Universidade Federal do Ceará.