Leis Humanas: Mais Selvagens que as da Selva
José Lemos**
Quando eu era recém-formado em Agronomia, recém entrado nos vinte e poucos anos, prestei concurso público e fui aprovado para trabalhar como Extensionista Rural na então EMATER-Pará. Fui locado na Rodovia Transamazônica, entre os quilômetros 46 e 90, no trecho entre os municípios de Altamira e Itaituba.
Aquela foi uma das mais intensas, gratificantes e emocionantes das experiências (eu que já tive tantas!) que tive na vida como ser humano. Eu Coordenava uma equipe que tinha um Técnico Agrícola excelente, Capixaba de nome Valésio e duas moças. Aléa, paraense que era Assistente Social e a Vera, paraibana de nível médio. Foram seis meses intensos, porque em agosto daquele ano em me transferi para a EMBRAPA.
Saíamos cedinho no nosso Jeep tracionado para prestar assistência técnica aos agricultores e suas famílias que eram assistidos por nós. Entrávamos naquela rodovia empoeirada no verão, ou enlameada no inverno. Entrávamos nos “Travessões” como eram chamadas as vias vicinais ao Eixo Principal da Rodovia. Seguíamos até onde era trafegável. Então estacionávamos o carro, eu sempre na direção, e nos separávamos. As meninas iam juntas para um lado, eu e o Valésio nos dividíamos para outro em busca dos nossos agricultores que ficavam confinados naquele fim de mundo. Eles precisavam da nossa presença para ver os roçados e assim termos condições de autorizar o Banco do Brasil a liberar as parcelas dos financiamentos de custeio das suas lavouras.
Quase garoto, eu já estava vivenciando cenários de muita carência. Ali estavam seres humanos, em geral nordestinos, que emigraram na esperança de alcançarem dias melhores. Saíram das suas cidades sem saber o que lhes aguardava naqueles rincões.
Moravam em “Tapiris”, arremedos de casebres cujas estruturas eram de madeiras retiradas da floresta e cobertas de palhas. Quase sempre de palmeiras de babaçu. Também abundantes. Estruturas que não tinham nada que lembrasse uma casa minimamente adequada para receber vidas humanas. Sem falar no surto de “piuns”, um mosquito que atacava em nuvens e que deixavam todos, sobretudo as crianças, com os corpos inflamados e disformes. Cenas caóticas que nunca esquecerei.
Nas caminhadas embrenhadas naquelas matas, em que nos guiávamos pelas “picadas” feitas pelos agricultores que levavam aos lotes, vislumbrávamos o espetáculo que a natureza exuberante proporcionava naquele ambiente “selvagem”.
Animais, plantas, igarapés com águas cristalinas, se organizavam de uma forma harmônica, irretocável. Mesmo as áreas Amazônicas sendo predominantemente planas, volta e meia, encontrávamos quedas de água que exibiam espetáculos visual e de aroma inebriantes. Não foram poucas as vezes em que contemplei, à distancia claro, manadas de antas enormes sob imensas árvores de “cajuí”, saboreando um tipo de caju pequenino, vermelho intenso e muito azedo. A fruta daquela árvore de porte exuberante.
As paisagens contendo espécies herbáceas, arbustivas e arbóreas se organizavam em harmonia. O aroma que fluía daquele ambiente enchia os meus pulmões. Não importavam as demoradas caminhadas que tínhamos que fazer para chegar aos lotes dos nossos “colonos”. Tínhamos energias sobrando para aquelas aventuras. Com poucos meses eu já conhecia todos pelos nomes. Tanto que quando chegavam ao nosso Escritório que ficava no Km46, na Gleba “Brasil Novo” eu já sabia de quem se tratava.
Mas naquela floresta abundante e densa, como em qualquer ambiente semelhante, prevalecia o que chamamos, de forma depreciativa, de “Lei da selva”. Mas é sob a égide dessa lei, que não está escrita em lugar algum, que não foi votada em parlamentos, não foi sancionada por um figurão, viviam em harmonia flora abundante, fauna diversificada, rios caudalosos, igarapés que transbordavam uma incrível sensação de paz, de prazer… E de vida. Literalmente!
As leis humanas criadas por seres não “selvagens” são sofisticados documentos que passam por “audiências públicas”, debates calorosos, retóricas sofisticadas. Estão colocadas em enormes compêndios, divididos em capítulos, parágrafos, incisos…
Médicos, no ato da formatura, juram solenemente que usarão o talento e conhecimento para salvar vidas. Advogados juram que defenderão as leis (essas que foram feitas sob aquele aparato). Engenheiros, Economistas, Enfermeiros… Todos nós que experimentamos esse momento solene de “colação de grau”, “juramos” cumprir as leis, respeitar os direitos dos outros, conviver em harmonia com a natureza…
Uma vez médicos, se não recebermos pagamentos generosos, os doentes morrerão. Advogados faremos tudo para transformar facínoras, quem se locupletou e ficou rico com o dinheiro publico, em “gente boa”. Engenheiros fazem obras que desabam porque superfaturaram orçamentos e subfaturaram estruturas para ficarem com a “sua babinha…” Aqueles juramentos solenes que são leis escritas, são peças de ficção.
Nós humanos não temos o menor dó em maltratar animais. De nos arvorar no direito de decidir quando eles irão morrer. Ou se terão que ser engaiolados ou cegos para cantarem para nos deleitar. Decidimos se uma árvore que a natureza levou anos para esculpir deve ser derrubada em minutos. Decidimos até se a pessoa que dizemos amar deve ou não ficar viva. E, muitas vezes, esse “amor” ficou registrado em cartórios e diante de testemunhas que viram e ouviram a nossa jura de fazer feliz a pessoa amada.
Ah, essas nossas leis… Todas são cruéis. Viva a“Lei das Selvas”!
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*Artigo publicado na minha coluna de O Imparcial do dia 11/02/2017.
**Professor Titular e Coordenador do Laboratório do Semiárido na Universidade Federal do Ceará.