José Lemos*
No último 14 de novembro o Brasil, Espírito Santo, terra que adotou, e o Maranhão, onde nasceu, perderam um talentoso poeta, compositor, cordelista e, acima de tudo, um grande ser humano. Desses difíceis de encontrar no mundo atual movido a interesses, a poder e a muito dinheiro. Morreu na aurora dos recém-entrados sessentas Jorge Ribeiro Sales ou, simplesmente, Jorge Sales, o nome que adotou para assinar a sua vasta obra.
Jorge era para mim como o outro irmão mais velho. Morou no Caminho da Boiada, entre a Macaúba e a Coréia. Ele sempre teve vocação para professor. Adolescente em São Luis “livrava” o dinheiro da entrada do cinema e do futebol dando aulas de matemática. A “Escolinha” funcionava na sala da humilde casa dos seus avós, “Seu” Teodoro e “Dona” Epifania, com quem morava juntamente com a sua mãe, a quem eu chamava de “Tia Liquinha” e a sua irmã, Nelma. A nossa casinha ficava numa vila que era perpendicular ao Caminho da Boiada, onde hoje é o Quartel do Corpo de Bombeiros. Teve que ser demolida para a construção da atual Avenida Kennedy ligando o bairro do João Paulo ao centro da cidade. Como sempre acontece nesses casos, os pobres devem ser desalojados para o progresso chegar. Por isso nós, e todas as 40 famílias que ali moravam, tivemos que sair, para não atrapalhá-lo, como bem denuncia o Compositor Adauto Santos na sua música “Triste Berrante”, uma das mais belas páginas do cancioneiro popular brasileiro.
Nos meus 11 anos minha mãe, “Dona” Amélia, mulher visionaria, que enxergou cedo que estudar era a única saída para os dois filhos dela tentarem melhorar aquela vida de muitas privações, colocou-me na “Escolinha do Jorge”, para aprender matemática. Com ele iniciei-me nesta matéria que viria ser uma das grandes paixões da minha vida como estudante e como profissional. Estudava pela manhã no Grupo Escolar Almeida Oliveira, hoje Sotero dos Reis, na Rua de São Pantaleão, e às tardes eu, e mais alguns garotos, íamos para a casa da Dona Epifania para a “Escolinha”. Um enigma que eu nunca consegui decifrar é como a mamãe conseguia pagar aquelas aulas particulares. O pagamento era quase simbólico, mas precisava ser feito. Afinal era dali que ele tirava a “grana” do lazer e ainda ajudava no minguado orçamento do “Seu” Teodoro que trabalhava como alfaiate.
Àquela altura Jorge concluía o Ginásio no Liceu. Perspicaz, anteviu que não tinha muito futuro em São Luís, dada a sua origem familiar humilde num Estado onde quase sempre não basta o talento para se conseguir avançar. Foi para o Rio de Janeiro morar com o Pai. Em seguida mandou buscar a irmã Nelma. Ambos deram prosseguimento aos estudos em nível cientifico (hoje nível médio) no Rio de Janeiro. Muito estudioso passou no vestibular para o curso de Engenharia Têxtil em que se formou e foi trabalhar numa famosa empresa que produzia roupas intimas femininas. Melhorando de vida, mandou vir para o Rio, em definitivo, a sua mãe que havia ficado em São Luís.
Ali trabalhou por 10 anos e, num período de crise econômica, a empresa teve que demitir funcionários. Jorge estava entre os demitidos. Dias terríveis! Casado, três filhas crianças… Por essa ocasião, inicio dos anos oitenta, eu já estava concluindo o meu Doutorado como Bolsista do CNPq e, de passagem pelo Rio de Janeiro, o encontrei num estado emocional ruim. Mas sempre bonachão. Estava estudando duro para fazer concurso. Convidou-me para ir à sua casa no Jabour, na zona Norte. Passamos um domingo juntos, e eu conheci a esposa e as filhas. Àquela altura ele já era também graduado em Matemática.
Mas o talento era enorme e as suas bases eram sólidas. Em meados dos anos oitenta passou no concurso da Receita Federal e foi nomeado para Vila Velha no Espírito Santo. Ali fixou residência e retomou a sua grande paixão: escrever poesias. Num gesto de total desprendimento, ocupava parte do tempo dos finais de semana dando aulas, como voluntário, em cursinhos preparatórios de concursos para pessoas carentes de Vila Velha.
Ficamos algum tempo sem contatos, em função das minhas andanças pelo mundo, sempre como Bolsista buscando lapidar-me. Nos reencontramos por contatos telefônicos nos anos noventa. Eu como Professor Concursado na Universidade Federal do Ceará e ele já como Auditor da Receita Federal. Ficávamos horas ao telefone, ele em Vila Velha eu em Fortaleza, ele me recitando as poesias, cordéis, pedindo a minha opinião de leigo. Resolveu publicá-las inicialmente num “site” chamado de “Usina de Letras” e me incentivou a publicar textos também por lá. Andei publicando alguns. Uniu-se a excelentes parceiros e passou a ter os seus poemas musicados e gravados em discos.
Em 2004 nos encontramos em São Luis. Viramos a Ilha de “cabeça prá baixo”. Comemos peixe na Raposa. Era época pré-natalina. Dona Epifania (sua avó), em vida, manteve um grupo teatral amador chamado de “Pastoral Filhas de Belém” que naquele ano continuava sendo encenado por uma das suas sobrinhas remanescentes. Fomos assistir e matar saudades dos tempos de dificuldades, mas felizes. Ele retornou para Vila Velha antes do Natal, e aquela foi a última vez que nos vimos. Estava saudável e com aparência ótima.
Em meados de 2007 foi-lhe diagnosticado um câncer que lhe seria fulminante. Tive a oportunidade de conversar com ele várias vezes ao telefone durante o seu calvário e sentia-lhe uma vontade incrível de viver. A doença não permitiu, e ele nos abandonou precocemente. Foi, mas deixou um legado de boas ações, além de poesias, músicas, cordéis que encantam pela beleza literária e pela sensibilidade. Bastante conhecida no Espírito Santo, sua obra também se difundiu na Paraíba, nos dois Mato Grossos e em Goiás. Os maranhenses, infelizmente, não conheceram esse talento da terra que, como tantos outros, teve que sair para conquistar o seu espaço em outras paragens. Descanse por onde estiver meu irmão. Nos reencontraremos um dia. A sua passagem por este planeta foi breve, mas nobre. A sua obra está no site www.jorgesales.com.br.