José Lemos*
Nesta terça-feira, 17 de março, eu conheci um pouco mais do meu estado. Em viagem de estudos em assessoria a uma futura Tese de Doutorado que irá avaliar a forma como é cultivado o mel de abelha tiúba, propriedades físicas, químicas, dentre outras características, estive visitando vários povoados de Morros, um município que apresenta paisagens bonitas e população rural muito carente.
A abelha “tiúba” é uma espécie nativa do gênero das Meliponas que é diferente das abelhas do gênero “Apis”, as mais cultivadas e, por isso, já se detém um maior volume de conhecimentos. As “tiúbas” são abelhas “mansas” e podem ser criadas até no quintal das casas. Diferentemente das abelhas Apis que são agressivas.
A riqueza de uma viagem assim é, além de observar composição de paisagens, formatação dos ambientes, a possibilidade de encontrar, trocar ideias e aprender com os moradores. Pessoas simples, que sobrevivem em equilíbrio de lâmina de navalha, tal o nível de pobreza, mas que acumulam sabedorias acerca do ambiente em que sobrevivem. Condição necessária para dele retirar o mínimo de que precisam.
O Município de Morros tem dois grandes rios: Una e Munim. Este último exercendo uma maior influencia no município e na circunvizinhança. Tanto assim que a microrregião que reúne Morros e os municípios vizinhos é também conhecida como “Região do Munim”. A viagem pelos povoados do município é predominantemente feita em estradas sem asfalto ou carroçáveis. A vegetação abundante é do tipo arbustivo e herbáceo, mas ainda se destacam espécies vegetais arbóreas como o Mirim, Mangaba, Fava de Bola. Observam-se também arbustos como os muricizeiros. As palmeiras de juçara e buriti se destacam nas partes mais úmidas. Mas também encontramos outras palmeiras como buritirana e tucunzeiro.
Os agricultores informam que ainda é possível encontrar animais silvestres. Vi alguns deles de espingarda nas costas, mas nenhum carregando qualquer caça. Aquela vegetação rarefeita, e de porte predominantemente baixo, parece não ter condições de abrigar uma população mais expressiva de animais nativos. Voando pelos céus, sempre nublados nesta época do ano, observei carcarás (imortalizados na obra de João do Vale) e alguns outros pássaros, mas sem muita diversidade.
O solo é predominantemente arenoso, com pouca matéria orgânica e com baixa fertilidade natural. Quando há chuva torrencial acumulam-se enormes poças de água que desaparecem, ou por escorrimento para o fundo, devido à sua baixa capacidade de retenção de umidade (pouco argiloso), ou pela evaporação provocada pela insolação intensa. Há um forte equilíbrio da vegetação com o solo, de tal sorte, que onde ela está desaparecendo, formam-se imensos areais. Há locais em que não se chega de carros sem tração nas quatro rodas. Há outros que somente são acessíveis de montaria, motocicleta ou caminhando sobre areias soltas e quentes.
Foi no povoado conhecido como “Cabeceira das Pacas da Sabida” que conheci uma senhora de setenta e quatro anos, rosto e expressão que demonstram a vida difícil que sempre teve. Seu nome é Adelina Constantino, mas todos a conhecem como “Dona Sabida”. O Povoado não é tão distante da sede do município de Morros, mas para chegar até lá se faz um verdadeiro rali. Fomos lá porque soubemos que ela cria a abelha tiúba em “cortiço”. Uma forma primitiva de criação e que eu não conhecia. Fiquei impressionado como, em pleno século vinte e um, ainda se observe um cultivo que deve ter sido o mesmo praticado por nossos ancestrais mais remotos.
Na criação em “cortiço”, o criador retira da vegetação nativa os pedaços de paus ocados onde as abelhas fizeram os seus enxames e os acondicionam em improvisadas casinhas rústicas. Portanto, sem qualquer procedimento tecnológico mais adequado de criação de abelhas já conhecidos para as tiúbas. E soubemos que aquela é uma prática ainda prevalecente para muitos criadores, a despeito de alguns deles com “instucia” (como eles dizem) e entidades não governamentais já terem desenvolvido alguns tipos de caixas de madeira adaptadas e manejo que torna a criação dessas abelhas uma atividade bastante promissora nas áreas rurais maranhenses. Mas cada caixa tem custo de trinta reais. Quem cria em “cortiço” não pode bancar aquele investimento inicial.
Além daquele tipo de criação, que foi a motivação de termos ido à casa da “Dona Sabida”, impressionou-me o nível de carência em que sobrevive toda aquela gente. O Estado é um grande ausente ali. Os seus braços, tão ágeis em áreas de riqueza e opulência, não alcançam gente tão humilde. Sequer tem luz elétrica no povoado e em outros que visitamos. Nunca receberam a visita de alguém da área de assistência técnica. Infelizmente esta ainda é uma realidade dura nas áreas rurais do nosso Maranhão onde se concentram os maiores bolsões de pobreza do estado. Como “Dona Sabida”, todos ali estão condenados a sobreviver entregues à própria sorte. Até quando?
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*Publicado em O Imparcial do dia 21 de março de 2015.
5 Comentários
As viagens são, talvez os sonhos que já tivemos, tornando-se realidade. Ainda não tive um sonho que contemplasse essas informações descritas no tão belo artigo de vivência, mas senti na pele; e a vontade de ir conhecer o lugar descrito se tornou mais uma inspiração do meu futuro. Para muitos viajar é apenas um passa tempo, mas eu penso diferente. O curso de Engenharia Agronômica me batizou no mundo, e para onde quer que eu vá, faço as mesmas observações da natureza (vegetação predominante, animais, tipos de solos, formação geológica, recursos hídricos, comportamento humano e, principalmente o modo de vida das pessoas habitantes do lugar). Nesses momentos, é indispensável à conversa com os mais antigos, porque eles detêm o conhecimento empírico que sem dúvida alguma, descreve todo o histórico daquele lugar. A agricultura e à pecuária são áreas do conhecimento que possuem um grande acervo de conhecimento e experiência escondidos. Não é o conhecimento da formação acadêmica/profissional, e sim a do dia a dia. São as várias formas de manifestação que os homens e mulheres têm para sobreviver e gerar qualidade de vida. A criação de abelhas nativas (sem ferrão), também chamada de meliponicultura é uma prática muito antiga. Atualmente, existem muitos projetos que objetivam resgatar essa prática de criação de animais silvestres, e também gerar resultados econômicos e sociais. A senhora Adelina Constantino é mais uma das vozes excluídas por entre as grandes vegetações com pouco acesso e sem mapeamento. Ela deve dominar com rigor todo o processo de criação desses pequenos animais. É emocionante a história, pelo fato de saber que o ser humano é dotado de uma capacidade de sobrevivência, quaisquer que sejam as condições, no entanto é lacrimejante imaginar que melhores condições poderiam existir. A inexistência e o sucateamento das instituições de Assistência Técnica, Extensão e Desenvolvimento Rural é uma problemática na maioria dos nossos estados brasileiros, atrelado a isso à falta de boas condições de trabalho e desenvolvimento humano e social ocasiona os problemas vivenciados no presente Estado.
Obrigado, Prof. Drº. Lemos, o seu artigo de vivência serviu de inspiração em mais um momento de leitura, e sem dúvida, aumentou meu sentimento de humanidade.
Edson Rômulo de Sousa Santos
Eng. Agrônomo | Mestrando de Economia Rural | 2015.1
Universidade Federal do Ceará – UFC
Mestrado Acadêmico em Economia Rural – MAER
A sua descrição me fez viajar pelo sertão… Consigo visualizar cada passagem do texto como se fosse um quadro.
Em estudo que acabei de concluir verifiquei que o principal fator de vulnerabilidade do semiárido não são as condições climáticas nem mesmo a situação econômica da população (essa condição foi o segundo principal fator). O maior problema é o acesso (ou falta dele) à infraestrutura básica.
O Maranhão não fez parte da pesquisa, mas a sua descrição corrobora os resultados que obtive para seus vizinhos. De fato, não se percebe a ação do Estado em muitas regiões tão inóspitas que chega a ser difícil entender como alguém consegue sobreviver em seus domínios.
Vou deixar o poder público de lado (ando muito ressentida com ele). Uma trégua momentânea para um instante lúdico. Façamos de conta que não há governo (isso é fácil).
O planeta terra está repleto de áreas de difícil acesso. Muitas pessoas vivem nesses lugares por opção, estilo de vida e são felizes assim. Então, eu lhe pergunto: Dona Sabida é feliz?
Muito enriquecedor este contato com estas pessoas, tanto profissionalmente como pessoalmente. Guardo com muito apreço as oportunidades que tive com os pequenos produtores.
Professor Lemos, este artigo expressou muito bem o resultado obtido em sua pesquisa de campo a Morros. Dona “Sabida”, certamente, representa tantas outras mulheres que enfrentam o desafio cotidiano da sobrevivência , mas sem o apoio de políticas públicas que resguardem suas vidas e dignidades. É dever da Ciência mostrar que o Desenvolvimento Rural Sustentável tem de contemplar essas realidades, transformando-as. Nesse sentido, o papel dos pesquisadores é de extrema importância, contudo precisa ser somado a ações institucionais que garantam aos indivíduos as liberdades substantivas, como afirma Amartya Sen em sua obra “Desenvolvimento como Liberdade”!
Parabéns querido Amigo. Feliz daquele que teve a chance deconhecer essa realidade é aprender com ela.