José Lemos
Neste dia 22 de março comemorou-se o Dia Mundial da Água. Uma data simbólica (todos os dias devem ser de preocupação com este liquido) que serve para nos lembrar da relevância da água nas nossas vidas e do fato de que esta preciosa fonte de vida está desaparecendo do planeta em níveis preocupantes, para dizer o mínimo.
No mundo existe uma população de pelo menos 1,5 bilhões de pessoas de um total de mais de sete bilhões de terráqueos, que já experimenta, de alguma forma, a privação de água de qualidade.
Existem localidades na África, na Ásia e na America Latina em que o cotidiano das famílias inclui a convivência diária com a falta de água. Uma cena comum, onde há falta de água, é ver mulheres e crianças carregando vasilhas de água. Na desigual divisão das tarefas caseiras diárias, sobretudo nas áreas rurais, sempre sobra para as mulheres e para as crianças cumprirem a faina de trazer água para as casas. Nessas áreas rurais, as mulheres cumprem jornadas exaustivas de trabalho que incluem, alem de trazerem água, ajudarem nas tarefas das roças familiares, prepararem comida (quando tem), cuidarem da casa e do bem-estar do companheiro e dos filhos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) produz anualmente os Relatórios de Desenvolvimento Humano onde são publicadas, entre outras informações relevantes, aquelas relativas aos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) dos Países a ela filiados, bem como os indicadores que compõem aquele aferidor de qualidade de vida.
A cada ano a ONU escolhe um tema relevante e convoca os seus consultores internacionais para fazerem análises acerca daquele tópico. O Relatório da ONU de 2006 foi totalmente dedicado à análise do acesso (ou privação) à água de qualidade e ao saneamento, outro indicador importante de qualidade de vida. Naquele documento está dito que o problema de acesso à água de qualidade dificilmente será resolvido pela humanidade porque ele afeta principalmente os negros e os pobres do planeta. Gente que apesar de ser bastante numerosa, não tem voz, não forma opinião e, quase sempre, vive sob a opressão e o tacão de governantes que usam do seu estado de carências (inclusive de água) para acumularem fortunas. Triste, mas real desígnio e constatação.
No Nordeste brasileiro esta situação é visível e sentida por milhões de conterrâneos espraiados pelos seus nove (9) estados. São populações majoritariamente carentes onde poucas famílias, perfeitamente identificadas, acumulam fortunas à custa daquele estado avançado de exclusão social.
Um dos nordestinos que melhor descreveu a saga dessa gente atendia pelo apelido de Patativa do Assaré, um poeta popular cearense que nos deixou faz poucos anos. Em sua seminal poesia (a mais famosa “Triste Partida” foi imortalizada na voz de Gonzagão outro ícone nordestino), Patativa conseguiu sintetizar o drama das famílias que esperam durante o ano inteiro pela vinda das chuvas para poder “prantá” os seus “ligumes”. Apela para o padroeiro do Nordeste, o São José. A crença é que se chover no dia daquele santo (19 de março), o inverno e a safra serão generosos. Quando não chove naquele dia, mesmo cético, continua esperançoso Mas a chuva insiste em não cair. Como as chuvas não vêm, a esperança se esgota na proporção da chegada do seu desespero. Olha para o ambiente seco e esturricado em seu entorno, vê famintos os filhos e a companheira. Toma a decisão mais difícil da vida. Pensa consigo mesmo: Deus e São José não permitirão que encontremos lugar pior do que se tornou a nossa terra. Deixa o seu cariri apenas no último pau de arara, porque a vaquinha já não tem mais couro e osso e já não pode mais com o chocalho pendurado no pescoço (como dizem os versos de Venâncio, Corumbá e Palmeira Guimarães). Não apenas a vaquinha. As galinhas, os porquinhos, o jegue, as “pranta”. Tudo morrendo por “farta” d’água. Não lhe resta alternativa. Emigra para local nunca antes visto, onde apenas ver cara estranha e procura trabalhos que não sabe fazer. Quando encontra.
O Brasil é um País paradoxal. Enquanto a seca é um cenário constante no Nordeste, a Amazônia aloja a maior reserva de água doce do planeta. Pois ali, justamente ali, encontra-se o maior percentual da população brasileira sem acesso à água encanada, conforme se depreende das projeções que fizemos para 2010 com base nos dados da PNAD de 2009. Estima-se que o Nordeste atravessou o ano de 2010 com 22% da sua população sobrevivendo em domicílios sem acesso à água encanada. Na Região Norte o percentual chegou a 41%. Naquela região, veja só, o Pará, que tem um imenso manancial de água na Bahia de Marajó, nos Rios Guamá, Xingu, e tantos outros, nada menos do que 60% da população não teve acesso à água encanada em 2010.
No Nordeste as situações mais difíceis, para variar, estão em Alagoas e no Maranhão, onde 32% das populações sobreviveram, em 2010, em domicílios que não tinham acesso à água encanada. O Brasil no começo deste milênio tinha 19% da sua população privada de água encanada. Em 2010, a situação não havia mudado de forma significativa, tendo em vistas que a população cresceu bem mais do que os 3% de redução que houve no percentual de domicílios que não tinham acesso à água.
Este é, sem duvida, um grande desafio. Se o programa do Governo Federal atual for realmente combater a pobreza, seguramente essas informações não poderão deixar de ser consideradas. Pobreza não é apenas privação de renda. É também privação de ativos sociais: água encanada, saneamento e educação. Fundamentalmente.
=======
*Artigo publicado no O Imparcial de 26/03/2011.