José Lemos
O bem-te-vi “é o mais popular dos pássaros brasileiros – até porque é encontrado tanto no campo quanto em grandes cidades -, o bem-te-vi é conhecido pelo seu canto (onde literalmente pronuncia o próprio nome) e também por sua plumagem: o dorso pardo, a barriga de amarelo vivo, uma listra branca no alto da cabeça e outra na garganta, e cauda preta. Mede, em média, 22,5 centímetros, e seu peso varia entre 54 a 60 gramas” como se lê no portal G1 (http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/terra-da-gente/fauna/noticia/2015/01/bem-te-vi.html).
O seu canto trissilábico, a um só tempo melancólico e bucólico, me remete aos meus tempos de garoto na terra que me viu criança e adolescente: São Luís. Ali na humilde, mas aconchegante, casa da família eu tinha o calor humano dos meus pais e do meu único irmão. Papai trabalhava duro como soldado da polícia militar, de onde recebia um acanhado soldo. Complementava-o fazendo “biscates” aos finais de semana e às vezes às noites como vigia na feira da Macaúba, que ficava perto da nossa casa.
A mamãe cuidava dos afazeres domésticos, mas arranjava formas de também agregar alguns trocados ao orçamento familiar. Era incisiva no cuidado com a nossa educação. Minha e do meu irmão que já era rapazinho. Quase sempre a nossa pequena casa, hospedava os nossos parentes de Bequimão ou de Caxias que vinham em busca de tratamento médico nos hospitais públicos de São Luís. Mas também vinham aqueles que buscavam emprego na capital. Isto fazia com que a nossa casa ficasse ainda menor e nos tirava toda e qualquer privacidade. A mamãe era quem mais sofria com aquela avalanche de gente que parecia ter como único destino o nosso endereço. Mas ela os recebia sempre de braços abertos, sacrificando o próprio e já restrito conforto.
A nossa vida seguia com aquelas carências enormes, mas os meus pais cultivavam a esperança de que dias melhores viriam. Papai era um otimista por vocação. Sempre estava imaginando que algo de diferente poderia acontecer e melhorar as nossas carências. Mas nada acontecia, e a nossa vida ia em frente enfrentando as dificuldades. Tínhamos como lenitivo ouvir o canto constante de bem-te-vis, num belíssimo cajueiro que ficava bem em frente à nossa casa no Caminho da Boiada, nosso bairro. A beleza daqueles cantos nos parecia antever que um dia tudo aquilo seria superado.
Eu estudava no Grupo Escolar Almeida Oliveira (hoje Sotero dos Reis) pela manhã e o meu único irmão mais velho que eu dez anos, o fazia no Liceu Maranhense. Colocar os filhos para estudar no Liceu foi o primeiro grande sonho (concretizado) da mamãe para os dois filhos que ela teve e que deu tudo o que lhe era possível naquelas dificuldades infindas. O outro sonho daquela mulher simples e que tinha as feições marcadas pelos sofrimentos, era que os filhos tivessem caminhos diferentes do que ela e o papai haviam trilhado. Vislumbrou que o único caminho para que isso fosse possível seria via educação dos dois filhos que “Deus lhe deu”, como sempre dizia.
Meu irmão, muito estudioso, finalmente conseguiu a tão sonhada redenção financeira. Aprovado em posição privilegiada no concurso do Banco do Brasil, no pique dos vinte e poucos anos, transformou a vida dele. E a nossa. Lembro bem da alegria que todos sentimos quando soubemos da sua aprovação. Fazer parte dos quadros do Banco do Brasil era objetivo inclusive de gente grã-fina da época. E o meu irmão, filho de gente humilde, havia chegado lá. Não era pouca coisa. Mesmo os meus pais, sem muito estudo, entenderam. A partir dali nossa vida teve uma inflexão que seria irreversível.
O tempo passou célere. Meus pais se foram. Ambos repousam em jazigos simples em São Luís, como queriam em vida. Resta-me um mar de saudades, de vontade de ao menos ouvir-lhes as vozes para pedir perdão pelas “malcriações” que lhes fiz e pelas respostas ríspidas. Queria lhes dizer um monte de coisas. Não posso mais.
Paulinho Pedra Azul, um talentoso poeta, músico e cantor mineiro, escreveu uma preciosidade de nome “Jardim da Fantasia”, mas que é conhecida por “Bem-te-vi”. Segundo ouvi dele, em entrevista, a poesia da música foi escrita para uma pessoa amada que se foi precocemente. Ele escreveu os seguintes versos: “Bem-te-vi, bem-te-vi/ Andar por um jardim em flor/ Chamando os bichos de amor/…. Bem te quis, bem te quis/ E ainda quero muito mais/ Maior que a imensidão da paz / … Onde estás? / Nas nuvens ou na insensatez/ Me beije só mais uma vez/ Depois volte pra ‘Lah’”.
Neste dois de novembro reverenciamos os mortos, sobretudo aquelas pessoas que nos foram fundamentais na vida e que “se mandaram” para “Lah”. Sabemos que os haveremos de encontrar em algum momento, mas bem que poderíamos tê-los agora, ainda que fosse por apenas um minuto, para lhes beijar, dizer, com os olhos marejados, que os amamos. Eu queria fazer isso para “Dona” Amélia e para “Seu” Domingos. Meus Pais. Pessoas definitivas na minha trajetória que eu amei e amo muito. Pena que a minha insensatez só me permitiu descobrir a imensidão dos meus sentimentos por eles depois que se calaram definitivamente. Em vida, eu não tive a sabedoria de lhes falar da intensidade do amor que lhes tinha. É sempre assim. Reconheceremos o valor e a importância das pessoas depois que elas se chamam saudade. Isto machuca muito… E um bem-te-vi canta bucólica, melancólica e insistentemente em frente à minha janela enquanto escrevo. Que mensagem ele estará tentando me mandar?
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*Artigo publicado no O Imparcial do dia 31/10/2015 e no Jornal Pequeno do dia 01/11/2015.