José Lemos*
Como hoje eu estou gravitando em torno de mais um aniversário, eu resolvi dividir com os meus leitores alguns momentos que foram importantes na definição da minha trajetória por este planeta, que eu espero ainda perdure por algum tempo. Uma forma de me desnudar, não com a intenção hipócrita de servir de exemplo para quem quer que seja, mas para mostrar que os nossos caminhos são traçados por nós mesmos.
Em São Luís, pelos meus 16-17 anos, estudante do Liceu, eu tinha que definir qual seria o meu futuro. Queria fazer uma Universidade. Mas como fazer planos tão altos sob as condições de carências da nossa família? Ainda assim eu não desisti…
A então Escola de Agronomia da Amazônia (EAA), hoje Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), inscrevia candidatos e mandava dois dos seus professores para São Luís a fim de realizar o seu vestibular. A inscrição era feita no Liceu.
Os maranhenses que eram aprovados naquele vestibular tinham uma Bolsa de Estudo mensal, paga pela SUDAM, cujo montante, em valores de hoje, equivale a R$1.200,00 (cálculo feito por mim). A bolsa incluía passagem no trecho São Luís-Belém-São Luís. A passagem de ida apenas era paga ao final do curso. Era pleno regime militar. Agronomia era uma profissão cobiçada pelos jovens. Agrônomos eram alguns dos mais bem remunerados profissionais. Éramos “bons partidos”. Os pais nos recebiam de braços e sorrisos amplos nas suas casas como namorados das suas filhas.
A nossa responsabilidade de bolsistas era tão somente ser aprovados em todas as disciplinas. Por causa da Bolsa há uma geração de Agrônomos no Maranhão formados em Belém. Foram eles que, em grande parte, criaram o arcabouço do que hoje é a UEMA que tinha no Curso de Agronomia uma das suas pilastras. Agrônomos maranhenses, formados em Belém, tiveram, e tem grande importância nos avanços que a agricultura maranhense alcançou, sobretudo no começo dos anos oitenta do século passado. O marasmo atual não é culpa dos Agrônomos, mas dos descasos que os governantes, que se revezaram no poder a partir dos anos noventa até aqui, dedicam à área, com a honrosa exceção do Governador José Reinaldo que chegou a ter cinco Agrônomos entre os seus Secretários de Estado. E eu fui um deles, com muita honra.
Aprovado no único vestibular que eu fiz, eu tinha que me apresentar em Belém no início de março para começar o meu curso. A bolsa somente se confirmaria quando eu estivesse matriculado no curso. Por aquela época, as estradas ligando São Luís a Belém eram precárias. Praticamente somente se podia alcançar Belém por avião. As passagens eram caras. Os meus pais não tinham como bancar… Começava ali uma odisseia que talvez eu conte algum dia aos meus leitores aqui neste espaço a forma como Dona Amélia contornou do alto da sua enorme sabedoria.
Viajei exatamente no dia do meu aniversário, ao final de fevereiro. A mamãe ficou chorando no Aeroporto do Tirirical e eu voei com os olhos marejados para longe dela. Nunca havíamos nos separado até então, e eu era apenas um garoto. Garoto que até então ainda não tinha lavado um prato em casa. Não sabia manusear dinheiro. Até porque era escasso. As roupas eram poucas, mas sempre limpas. Por ela, Dona Amélia.
Ainda em São Luís acertei com o Eliel, que morava no mesmo bairro, e que já ia fazer o segundo ano de Agronomia, acerca da república em que eu iria ficar. Tornei-me assim “calouro dele” ou a sua “fera” como dizíamos na época. A nossa república tinha nome e sigla: Casa do Estudante Maranhense de Agronomia (CEMA).
Viajamos com as cabeças raspadas no mesmo voo: eu, o João de Deus e o José Francisco, colegas de Liceu que, comigo, faziam parte dos sete maranhenses que logramos aprovação naquele vestibular entre os 320 que concorreram em São Luís.
Chegamos à república no Bairro de Canudos, em torno de uma da tarde. Fomos “recepcionados” por um grupo de veteranos. Deram-nos as “boas vindas”, nos apresentando uma pilha de pratos e de panelas imundos para lavar. Casa suja. Sanitário impraticável. Tudo nos esperando para limpar. Descarregamos as malas e já fomos para a luta. Depois daquela faxina, veio uma seção de trotes. Alguns pesados. Mas tínhamos que suportar porque precisávamos da moradia.
Éramos 22 rapazes. Todos em situação muito parecida. Dependíamos somente daquela bolsa que quase sempre atrasava. Nós fazíamos o revezamento mensal na administração da república. A cada mês tinha um “Presidente” eleito por nós.
Dormíamos em beliches ou redes. Eu dividia o quarto em dois beliches com três outros colegas. A escola nos cedia beliches, mesas, armários, geladeira e fogão “sambados”, mas que funcionavam. Um professor da EAA avaliava o aluguel da casa.
A comida era feita em casa. Tínhamos uma senhora que as preparava. Irreverentes, demos o nome daquelas “delícias” de “quase nada” (QN), para fazer jus ao conteúdo. Pelas manhãs comprávamos bisnagas de pães que eram divididas democraticamente em quatro pedaços cada uma. Às vezes havia margarina. Quase sempre não tinha. O pedaço de pão descia seco. Mas era tão gostoso, quentinho…
Aprendi a conviver com outras pessoas evitando conflitos. Logo apreendemos que não se podia acender luz no quarto se tivesse algum colega dormindo. Nem incomodar quem estava estudando. Quando isso acontecia “o mundo desabava”. Aprendemos a administrar as compras de mantimentos com aquele pouco dinheiro que ganhávamos. Quando alguém ficava inadimplente, os outros ajudavam.
Aqueles anos de república foram alguns dos mais intensos da minha vida. Muitas carências, mas concluímos de letra o nosso curso. Colei grau em 2 de dezembro. No dia 2 de janeiro, do ano seguinte, eu já estava contratado como Agrônomo concursado. Tive então a minha Carteira de Trabalho assinada. Nunca mais deixei de tê-la. Pena que para a maioria dos brasileiros não é assim. E não precisamos de cotas por ser negros ou egressos de escola pública. Estudamos no Liceu. E isso dizia tudo!
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* Texto para o dia 24/02/2018.