José Lemos
Cultivar a terra, contornar dificuldades, interagir com a natureza para produzir alimentos. Eis alguns dos desafios que enfrentamos no exercício da mais antiga das artes. A precursora de todas as ciências: Agricultura. Registros confiáveis dão conta que tudo isso começou por volta dos anos 8.500 antes da Era Cristã (a.C) no Sudoeste da Ásia, numa área conhecida como “Crescente Fértil”, espraiando-se num eixo com sentido Leste-Oeste, numa enorme faixa que incluía terras propícias para o cultivo, situadas na mesma latitude.
Todo ser vivo, animal ou vegetal, incluindo organismos tão singelos como protozoários aos mais complexos, talvez os dos seres humanos, tem duas funções vitais: alimentação e reprodução. Para que aconteça a segunda função vital é preciso que os seres vivos estejam bem alimentados. Não há como perpetuar espécie estando faminto. Portanto, a alimentação antecede a tudo. Isto justifica a importância desta ciência, Agricultura, para a vida humana neste planeta. Somente depois que o ser humano conseguiu cultivar o que lhe era essencial para a sobrevivência, é que foi possível liberar energias para exercitar outras atividades. Com a especialização de muitos deles na produção de comida, sobrou condições para que outros passassem a se dedicarem às demais artes, ciências, outros afazeres. O aprendizado de cultivar animais e plantas propiciou aos seres humanos viverem em sociedade, se organizarem em grupos, praticarem religiões, o exercício político, terem mais filhos. Antes, como caçador-coletores, não poderiam ter prole elevada, porque necessitavam estar em constantes deslocamentos em busca da sobrevivência. Como não conheciam outros métodos de contracepção, os casais se privavam de atividades sexuais por longos períodos de quatro a seis anos, para dar tempo aos filhos crescerem e, eles mesmos, coletarem e caçarem os próprios alimentos. Uma tortura! Convenhamos.
Diferentemente de todas as demais atividades, a agricultura é praticada sob céu aberto. Os agricultores trabalham sob sol e chuvas, relâmpagos e trovões do amanhecer ao anoitecer. Não há feriados para as atividades. Agricultores trabalham todos os dias do ano. Devido a essa lide pesada, homens e mulheres que trabalham na agricultura quase sempre têm idade aparente maior do que a biológica. O envelhecimento lhes é prematuro.
Os envolvidos em atividades não agrícolas esmeram-se para produzirem estimulados por expectativas de vendas que acontecerão quando os seus produtos ficarem acabados. Quando não conseguem vender toda a produção, sabem que podem estocá-la indefinidamente para vendê-la no futuro. Os agricultores enfrentam riscos durante o preparo da terra, porque pode chover demais ou de menos o que, em ambos os casos atrapalha. Efetuado o plantio, durante o desenvolver da sua atividade, porque as chuvas podem atrapalhar de novo faltando ou se excedendo. Sem falar na sempre constante possibilidade do surgimento de pragas e doenças nas lavouras que precisam ser combatidas sob pena de verem todo o trabalho perdido. Quando finalmente chega o dia da colheita, tem que concorrer com a produção de milhões de outros agricultores que fizeram exatamente como eles e que também precisam vender o seu produto. O resultado é o aviltamento dos preços que todos receberão pelo produto. Um paradoxo. Depois que conseguiram ultrapassar todos os obstáculos e finalmente produziram, os preços dos seus produtos despencam por causa da sazonalidade que provoca abundancia de oferta. Como se trata de produto perecível, diferentemente do produtor de um bem industrial, não poderá armazenar indefinidamente. Não será diferente se a atividade for de criação de animais.
Mas as pessoas que trabalham na atividade fazem porque gostam. As suas energias se potencializam com as dificuldades. Por outro lado, a pesquisa agronômica deu grandes saltos, sobretudo a partir da segunda metade do século passado. Os rendimentos de todas as atividades experimentaram ganhos inimagináveis, por exemplo, quando as previsões catastróficas malthusianas anteviam que haveria escassez de alimentos porque a produção desses não conseguiria acompanhar a evolução da população mundial. Isto foi superado há bastante tempo. Há excesso de alimentos produzidos no mundo. Existem famintos sim, em torno de um bilhão (aproximadamente um sétimo da população do planeta) devido à pobreza que priva aquele contingente de ter acesso à comida que existe abundantemente.
E há mais desafios para a agricultura nos anos que virão. Com efeito, estima-se que a área agricultável do planeta seja de aproximadamente 3,23 bilhões de hectares. Esta área tende a diminuir como decorrência da urbanização das populações e da degradação de parte considerável dos solos. A área agricultável atual per capita no mundo é de apenas 0,46 de hectare. Uma relação que está em franca tendência descendente, face ao crescimento populacional, à urbanização da população que encolhe as áreas rurais, e à degradação de parte considerável dos solos em decorrência de práticas predatórias. Além disso, uma boa parte dessas áreas está destinada à produção de bioenergia, o que reduz ainda mais aquelas destinadas à produção de alimentos. O grande desafio de agora e do futuro será produzir comida para toda essa gente, que evolui em quantum sobre uma área agrícola que encolhe. Cada hectare terá que produzir bem mais do que já acontece atualmente. Nós, que militamos e exercitamos com vocação e sacerdócio as Ciências Agrárias, temos mais este grande desafio para encarar. Difícil, mas possível. Vamos a ele!
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*Artigo publicado em 4 de janeiro de 2014